Algumas reflexões sobre o incidente Sartre/Brad Pitt


March 25, 2023

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Talvez você tenha visto essas imagens nessa semana 👀
Talvez você tenha ouvido falar no rumor de que um filme biográfico sobre Jean Paul Sartre (o Ser e o Nada) estaria em produção estrelando Brad Pitt. O ator de Clube da Luta interpretaria o filósofo francês, e Eva Green (Os Sonhadores) faria o papel de Simone de Beauvoir (o Segundo Sexo), filósofa e companheira de Sartre. A “notícia” circulou na última semana, gerando revolta e risos. Sartre é reconhecidamente um dos filósofos mais feios que já existiram, seria absurdo—porém ainda talvez um pouco plausível—se ele fosse interpretado por um homem bonito como Brad Pitt. Há algum vestígio de plausibilidade nessa ideia porque se trataria de Hollywood, e todos conhecem o histórico de filmes inspirados em histórias verídicas com pessoas no elenco muito mais atraentes do que as pessoas reais que viveram aquelas histórias.
Bom, talvez você já saiba do que eu vou contar, mas eu fui autor dessa notícia falsa—sim, caso você ainda não tenha visto, é uma notícia falsa. Não há nada que indique que tal filme esteja em produção, muito menos envolvendo aqueles atores. Foi tudo uma brincadeira. Ocorreu assim: no sábado passado (18/03), eu estava mexendo com a quinta versão da inteligência artificial Mid Journey, que havia sido lançada recentemente, quando pensei que seria engraçado imaginar um filme hollywoodiano sobre Sartre e Beauvoir. Eu perguntei para Moiara, minha namorada, quem seria o ator mais implausível para interpretar Sartre, e ela, sem parar pra pensar, respondeu com o nome de Brad Pitt (a Simone/Eva Green eu imaginei por conta própria). Procurei fotos de cada uns dos atores, coloquei na IA e pedi para que a máquina imaginasse Pitt como Sartre e Green como Beauvoir. Foram geradas 4 imagens para cada comando e eu escolhi as que pareciam mais verossímeis. O processo todo durou 5 minutos. Eu coloquei o que eu pensava se tratar obviamente uma piada no meu twitter pessoal—como já havia feito diversas vezes—e segui com meu final de semana.
Quando já era domingo de tardezinha, a notícia tinha rodado o mundo, deixando um rastro de indignação (e, eu espero, gargalhadas). Hoje conta com mais de 6 milhões de visualizações. Não sei bem como aconteceu, mas chegou em pessoas com muitos seguidores, algumas até do cinema, que ampliaram o alcance do tweet original significativamente. 

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Hollywood não tem limites
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fim
Eu nunca pensei que essa piada iria tão longe. Cheguei a prestar esclarecimentos para o jornal Peruano La Republica e para o jornal turco Teyit (sugiro a tradução para português desta notícia para risos adicionais). Desde então, sites do mundo todo compartilharam a checagem de fatos. Moiara disse que eu provoquei um incidente internacional. Eu devo admitir que é um pouco surreal que eu, um professor de epistemologia, tenha criado uma fake news—a observação foi da minha colega Valquíria Machado—ainda que algo inadvertidamente.
Agora que a poeira baixou, quero refletir um pouco sobre isso. Por quê? Eu faço imagens assim há tempos e nenhuma transcendeu o círculo dos meus poucos seguidores. Por que essa em especial causou tanto furor? Como que as pessoas foram tão rápidas e resolutas em se manifestar contra aquele suposto absurdo sendo que a origem da notícia tenha sido um professor de filosofia de uma universidade federal brasileira sem nenhuma conexão com Hollywood?!

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Disco Heidegger—essa imagem não ganhou quase nenhuma atenção, embora a ideia seja muito mais insólita do que Sartre boa pinta
Especulando descontraidamente, eu diria que as pessoas consomem notícias na internet já predispostas à indignação por força do hábito. Isso inclui todos nós. Várias vezes eu já vi algo absurdo, revoltante (talvez hilário também) e prontamente passei adiante para meus contatos mais próximos. Talvez a indignação compartilhada seja um mecanismo que vise a coesão social. Talvez seja um traço evolutivo antigo que permitiu aos nossos antepassados alienarem dos seus respectivos grupos aqueles que não compartilhavam dos mesmos preceitos morais. Talvez seja um fenômeno novo que ganhou forma com a internet e notícias em massa alimentadas unicamente por números cliques. Qualquer que seja a origem e a função dessa sensação, parece-me hoje que ela tenha sido o que proporcionou o compartilhamento massivo—pois, talvez numa média, nós sejamos mais parecidos com Sartre do que com Brad Pitt em termos de estética e por isso tenhamos ficados indignados com esse suposto "apagamento das pessoas feias", como disseram no twitter. Soma-se a isso que nossa posição epistêmica padrão normalmente é crer no testemunho alheio. Isso ajudou o negócio a tomar proporções inimagináveis. Quero apenas deixar claro que não quis ofender ninguém (algumas pessoas mais crédulas me relataram terem passado vergonha comentando com outros sobre essa notícia falsa), apenas fazer uma piada. Queria passar isso a limpo antes que as pessoas achem que esta seja de fato uma foto rara de Theodore Adorno dançando ska.